sexta-feira, maio 07, 2010

A invenção

Foi já numa última tentativa desalentada que a máquina funcionou. O pequeno papel cuspido pela monstruosa geringonça era o resultado de dias e noites e cálculos e esquemas e gráficos amontoados na mesa cuja superfície esquecera já a luz do sol. 

O gordo presidente da Câmara, em véspera de eleições, saudou efusivamente a invenção e o seu criador e, sem deixar de enxugar o suor da testa com o teimoso lencinho branco, mandou anunciar que "a autarquia iria colocar a máquina na praça principal, no feriado municipal, para usufruto de todos os habitantes".

Quando o feriado amanheceu, o pequeno grupo de miúdos que tentava espreitar a invenção por baixo do pano negro já se tinha transformado numa multidão de várias idades, cheiros e dores que esperavam o presidente. O homem chegou, pomposo e ridículo, com uma faixa vermelha que lhe emproava ainda mais o ventre barrigudo e começou:

Enquanto presidente desta belíssima autarquia, já habituada a gloriosos acontecimentos, venho inaugurar a... a...

Olhou em volta, constrangido, furioso. Ninguém lhe tinha comunicado o nome do aparelho. Perante a expressão inquisitiva de toda a sua comitiva, esqueceu as formalidades e, num tremendo e inútil esforço de imaginação, baptizou-o assim mesmo.

...a máquina-de-calcular-a-idade-interior!

O inventor, quase engolido pela população ansiosa, torceu a boca num amargor evidente e fechou os olhos com força, numa rejeição quase inata daquele nome politicamente imposto. Ignorante ou indiferente, o presidente prosseguiu mas, notando o burburinho que se elevava no ar, deu por terminado o discurso e, destapando a máquina, foi ele o primeiro a entrar no que poderia ser uma cabine de provas de uma loja lunar. 

Uns quantos pi-pis e luzinhas depois, a máquina expeliu um papelinho com um número de dois dígitos que ficou pendurado, para observação de todos, até que o presidente o arrancou e, vendo-o, amassou de imediato, vermelho, embaraçado pelos seus 10 anos interiores.

Sucederam-se centenas de experiências. Umas provocavam gargalhadas colectivas, outras breves embaraços pessoais. Até que ela entrou na máquina.

Os pi-pis e luzinhas não terminavam e o papel não saía. A mulher, impaciente e envergonhada pelas centenas de olhares que a interrogavam, espreitava a ranhura de onde sairia o papel, mas nada. Só pi-pis e luzinhas intermináveis. 

Já o inventor tentava abrir o painel quando o presidente encaixou um formidável pontapé na máquina encravada que, para fúria e surpresa do primeiro, fez o mecanismo funcionar tempo suficiente para imprimir o papel.

Os amores e desamores, os gostos e desgostos vários, sucessivos e incessantes da jovem mulher de 100 anos interiores arruinaram a máquina do inventor para sempre.

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